terça-feira, 19 de março de 2024

Desordem



Tenho palavras a montes, espalhadas pela mesa à qual me sento.

Entre elas, as memórias jazem silenciosas mas presentes

destemidamente.

Procuro entre as palavras, as certas para que possa escrever,

afinal sinto tanto, falo pouco do que sinto, mas vai-se-me acabando o espaço e a força para não dizer tudo o que realmente me importa.

Já, como bem sabem, fui assentando morada pelos livros que passei,

as histórias que visitei, as lembranças que guardei e os milhares de versos, poemas, uns com rima e outros nem por isso,

que fui escrevendo vida fora.

Mas sei, agora sei, que esta desarrumação na minha mesa vive também na minha alma, se é que tenho disso,

e no meu peito. 


Sei que no peito que tenho está tudo desarrumado, pois que o morador que lá tenho volta e meia queixa-se da desordem,

das palavras, dos sons, risos e choros que elas têm, do tanto que lhe dizem e do silêncio retumbante que elas fazem.

Coitado! Digo eu quando o ouço reclamar. Havia de ver a desordem de mim cá fora que se assustava. 

Penso em responder-lhe, mas depois calo-me. Podia pedir-lhe que compreendesse,

pois são as minhas palavras e tudo o que elas transportam em si.

Podia, também, pedir-lhe que ele mesmo arrumasse o meu peito, mas depois lembro-me que ele sou eu, mesmo que não pareça…

São, murmuro para mim, só palavras…

umas tão breves, outras tão longas; 

umas tão suaves, outras tão duras;

umas tão firmes, outras tão fracas.

Mas são tantas, e tão valiosas, as minhas confusas palavras.

Creio que por muito que as arrume, vão continuar espalhadas pela mesa: o amor mais aqui, a esperança mais ali, a imaginação acolá,

a poesia mais para cá, o sonho mais para lá

e a realidade, parece-me que caiu para baixo da cadeira,

hei de ir lá buscá-la, que me faz falta e não vá ela cruzar-se com a desilusão, que anda perdida há muito de baixo da mesa e que por displicência e desembaraço deixei que por lá ficasse até então.


Tenho de por ordem nisto, tenho de arrumar as palavras, os poemas e os pensamentos,

libertar os vestígios dos dissabores e limpar o pó das memórias,

abrir as portas e janelas do meu espaço, plantar nos jardins do meu pequeno mundo as flores das minhas certezas e arrancar as ervas venenosas do desgosto;

Sim, tenho de o fazer…

Vou abrir as gavetas das cartas antigas, das canetas inutilizáveis e dos brindes sem sentido que um dia foram amuletos dos tempos já idos. 

É que, tenho de ser honesta , preciso de espaço para o que me importa, para arrumar as minhas palavras e para sentir as minhas coisas.

Já não quero coisas que de nada me servem., expectativas que não me cabem, paixões que não me estremeçam nem voos que não me façam tocar o infinito.

Afinal a vida é tão imensa, o tempo é tão escasso   e as palavras… ah! as palavras… são a minha desordem e o meu aconchego, o meu silêncio no desassossego, são o meu barulho em meio à multidão e são, também, a minha bóia de salvação quando não me consigo encontrar…




Tenho, portanto, estimado leitor, uma desordem assumida nas linhas que lê.

Mas não fuja! pois de que importa se isto que lê é um poema ou uma prosa?

Se, no fim das contas, tudo o que nos importa, a mim e a si, que me lê, é sentir cada palavra perdida ou encontrada, no encontro desencontrado das batidas ritmadamente descompassadas  do coração.





“Sejamos, então, em poesia ou prosa desordenadamente felizes e façamos por sê-lo.



segunda-feira, 18 de março de 2024

Desalento



Fico-me neste silêncio retumbante,

destemido,

Que me cai nas mãos, na pele, na alma

como se de uma peça de roupa se tratasse…

Já poucas palavras me vêm à boca, assomam,-se aos lábios e pouco mais sei que tenho de fazer.

Instalou-se este desalento, esta quietude possivelmente demasiado quieta

E eu, que nada prevejo mudar, coloco as mãos uma sobre a outra e assumo que sou um ínfimo pedacinho de vida que um dia, como todos os outros pedacinhos

Também se vai.


Ir, não me assusta, nem me preocupa, o que me preocupa é esta dor que ainda cá está

e provavelmente ainda cá fica e que não sei porque a sinto, porque a abrigo, como se de mim fizesse parte.

Se tentar explicar o que sinto me devolvesse o alento, quantas palavras pescaria no mar mais profundo do meu ser 

E traria aos lábios para que pudesse eu ser primavera em flor no fulgor da vida.

Mas falar não me liberta, porque nem eu mesma sei se entendo o que sinto, o que sou, o que sei

E o tanto que esta dor me emudece, me molda, me acorrenta. 


Pouco há que me prenda, mas tanto há que me amarra…

E logo eu, que se fosse apenas coração, batia somente pela liberdade de viver...

    

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Poção



Juntei os silêncios num caldeirão com pós de perlimpimpim,

misturados com mais uns sonhos e desejos,

uns olhos de quem tudo vê e um coração de quem tudo sente,

umas mãos de percistência e a luz da sabedoria.


 De varinha em punho

fiz brilhar estrelas na noite mais escura,

fiz surgir fadas e gnomos mágicos com flautas coloridas e poderes incríveis.

Dancei as mesmas danças que só dançam os que sonham;

disse a mesma presse que só dizem os que creem;

e atrevi-me a viver como só vivem os que imaginam.


Adicionei os versos soltos escritos pelo tempo,

Dei às palavras outras cores, dei outros ritmos aos tambores e gargalhei até que tudo pudesse acontecer,

chorei até que tudo deixasse de doer…

e desenhei amor onde nada mais havia para além do vazio.


Juntei ainda à poção uma pitada de loucura e mistério,

umas lascas de esperanças e a essência dos sorrisos,

 uns pingos de chuva e um toque de luar.


Afinal a bruxa era eu e enquanto vivi, em poemas, por um dia, não houve feitiço que não fizesse.


E assim sei que na poesia, por magia

  aconteci!



quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Deixa-me — (Um Arco-íris Poético)


In: Poesia Reunida, No Fim do arco-íris, Poema integrado na coletânea poética: Um Arco-íris poético; um lançamento Pastelaria Estúdios Editora.




Deixa-me pintar o mundo nos meus olhos

e ver defronte um arco iriz infinito.

Amar é ter asas para chegar tão longe como o sonho
e depois de voar, pousar certamente sem medo…

Deixa-me morrer de amor e de alegria,
segundo a segundo, momento a momento,
porque se quer, porque se sente.
E eu sinto… Sentes?

Deixa-me sonhar-te mais um pouco,
imaginar-te a tocar aquela linha entre o céu e o mar,
para trazeres aquela estrela que te saiu da mão
num sopro, num sorriso todo teu…

Deixa-me escrever e descrever
o que não dizes, o que não digo.
Aquele segredo nosso, que nos cabe num poema
e que nos vive nos abraços tão cheios de espaço
para amar…



Deixa-me colher flores no jardim
e plantar sonhos perfumados,
para que os possamos concretizar quando formos borboletas
e o amor nos devolver as asas que os desencantos nos teimam em roubar.

Deixa-me tocar-te as pálpebras e descobrir as cicatrizes do que já te aconteceu.
Eu vou deixar que toques as minhas cicatrizes,
para que percebas que também já fui ferida em batalhas,
mas ainda sou capaz de amar e voar,
porque o coração tem asas que só o amor lhe dá -  eu sinto, sentes?


Deixa-me sonhar mais um momento. 
O relógio ainda não parou, e a vida começa agora,
num passo rumo ao desejo de continuar…
Continua comigo, que ainda não chegámos ao fim deste imenso que somos,
e eu ainda espero por voltar a ver o teu sorriso.

Deixa-me contar as estrelas mesmo que sejam distantes.

Que elas acreditam, se lhes disser,
que como este, tenho mais mil poemas por escrever…

 

Peço-te: continua comigo,
que ainda há um verso guardado por escrever.
E nós somos cúmplices do tempo,
e o que nos une, é tudo o que deixámos acontecer…

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Luar de Prata



Contei à lua mil e um segredos

e dela nada ouvi. Calou-se.

Não me contou segredos, porque não os tem, 

não me revelou nada, porque nada havia a revelar. Mas revelou-se,

como num lençol de sonhos e de prata;

e envolveu-me como outros braços há muito que não o fazem,

e despiu-me de medos, como há muito não me despia,

e vestiu-me de calma, como há muito não me acalmava.

E ao meu ouvido disse, baixinho - 


Fiz- te a cama... Agora dorme;

que todo o tempo tem o seu tempo de acontecer…



terça-feira, 15 de março de 2022

Anoitecer

Anoiteço… 
A vida corre fria lá fora e da janela encaro-a.
Temo-lhe a pressa com que vai, mas acompanho-a com os olhos
e as mãos a formigar de desamparo, porque como quase sempre
eu não sei a que me agarrar.

Peço, num suspiro profundo, que a vida pare.
Não consigo acompanhar a sua pressa mas nadalamento,
porque ainda existem milhões de estrelas para contar…
e eu que gosto tanto de vê-las, não sei como o deixar de fazer.

Anoiteço…
e faz frio lá fora.
A vida ainda corre e eu ainda estou à janela.
O poema nasce das minhas mãos inquietas e desta alma que teima em viver sonhos
enquanto a vida corre, o mundo aanoitece
e eu anoiteço, também…

Dou, por rebeldia, asas ao poema,
porque as mãos não se acostumam à quietude
e eu sei que as noites são dos poetas,
os poemas das estrelas e eu
sou livre para sonhar, mesmo que a vida corra,
A noite acabe e este poema tenha fim…

Até chegar o amanhecer.